segunda-feira, 18 de maio de 2015

Estrelas de papel pardo

Antigamente a canalha acordava cedo para não chegar atrasada à escola. Todos os dias eram dias para um joguinho de futebol no remediado campo de terra batida em frente ao liceu.
Os primeiros a chegar faziam as equipas. Depois chegavam outros e mais outros, muitos. Todos contra todos, desde que houvesse bola, era vê-los correr numa vertigem maior do que a sua compreensão. Suavam-se as estopinhas em autênticas finais sem lugar para complacência e quando o dono do tesouro maior não aparecia, a malta desenrascava-se ao futebol humano, no qual o corpo se substituía ao esférico no seu destino de fura-redes. Quando soava o toque, dispersava-se para a sala de aula, sacudindo da roupa o excesso de pó, exibindo as escaras dos joelhos como troféus de uma luta benigna e mágica.
No tempo do futebol puro o conhecimento era empírico, dos pés à cabeça, de calças rotas e ténis de boca aberta, sem o cheiro a novo das réplicas perfeitas das escolas de futebol nem dos sonhos formatados em laboratórios franchisados que cresceram como ervas daninhas pelos centros urbanos.
O menino cresceu, fez-se homem e descobriu na teimosia empírica que o futebol nasceu para todos mas nem todos nasceram para ele. Seguiu o seu caminho à sombra do jogo, comprando um lugar do lado de lá do tapete verde, aos brados, por vezes em lágrimas, por entre a turba de outros ex-futuros craques, sonhando com a ressurreição através dos olhos da descendência.
Em menos de nada, está o menino inscrito numa escola de futebol, fardado a rigor e com ar de craque em miniatura. Há lugar para todos e a nenhum é negada a esperança de altos voos, mesmo que ainda não saiba correr, que seja coxo de uma perna ou das duas, não veja, não ouça ou que confunda futebol com Lego. Viva a democracia. Desde que pague, não se impede ninguém de acreditar em Bolas de Ouro ou em Ligas dos Campeões.
As escolas de futebol são um sinal dos tempos, destes tempos de suspeita racionalidade em que entidades mascaradas de mercados, substituíram o papel dos ditadores no despotismo das sociedades modernas. Tudo tem um preço, tudo se resume á esfera numerológica que a lógica, essa, é uma batata.
O futebol como fenómeno maior de aglutinação de afetos tornou-se de á muito um espaço privilegiado para os mercados se alimentarem dos milhões que caem do céu provindo de lugares exóticos, como quem compra estrelas com amendoins. Embora sem movimentarem milhões, as escolinhas tornaram-se com o dealbar do Século num fenómeno empresarial que aproveitou as mais imaginosas obsessões futebolísticas dos papás.
Esquecem-se que o talento nasce de geração espontânea. Cristianos Ronaldos não se compram no supermercado nem em lojas de conveniência embora seja de toda a conveniência fazer render o peixe enquanto a maré está cheia.
Na verdade, criar condições para a aprendizagem e desenvolvimento da prática do futebol até pode ser benéfico desde que não se perca de vista a pureza lúdica do jogo selvagem. Aproveitar o talento puro e optimizar as valências juvenis devia ser o foco das escolas de futebol sem descurar o fundamental amadurecimento humano do individuo enquanto projecto de ser Social. Tal no entanto não parece ser condição primeira nos projectos empresariais destas escolas.
Uma observação atenta do quotidiano destes espaços permite aferir que a metodologia empregue se destina ao ensino dos fundamentos básicos do jogo a partir de uma lógica de competitividade que permeia o individuo e não o desenvolvimento das suas competências numa lógica colectiva.
O mais chocante é ver que o núcleo fundamental para o crescimento equilibrado; a família; é o principal elemento desestabilizador do carácter da criança. Basta assistir a um qualquer encontro de escolinhas e assistir ao espectáculo triste do incitamento à agressividade muito para além da normalidade entre formadores de gente, ao ponto de serem, tantas vezes, as próprias crianças a educar os pais para o fair play.
Tão ideal quanto utópico seria adaptar o futebol de formação à formação de pai, fazendo depender o sucesso daquele aos méritos deste.
Da (de)formação de base se justificam os excessos, a violência que tanto condenamos e que é sempre culpa dos outros, nos estádios e fora deles.
Não existem craques sem Homens. Formar para o jogo vai muito para além do passe e o remate, da defesa ou o ataque. Ensinar futebol é também ensinar cidadania, porque a vida é apenas um jogo.


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