Antigamente
a canalha acordava cedo para não chegar atrasada à escola. Todos os dias eram
dias para um joguinho de futebol no remediado campo de terra batida em frente ao
liceu.
Os
primeiros a chegar faziam as equipas. Depois chegavam outros e mais outros,
muitos. Todos contra todos, desde que houvesse bola, era vê-los correr numa
vertigem maior do que a sua compreensão. Suavam-se as estopinhas em autênticas
finais sem lugar para complacência e quando o dono do tesouro maior não
aparecia, a malta desenrascava-se ao futebol humano, no qual o corpo se
substituía ao esférico no seu destino de fura-redes. Quando soava o toque,
dispersava-se para a sala de aula, sacudindo da roupa o excesso de pó, exibindo as escaras dos joelhos como troféus de uma luta benigna e mágica.
No tempo
do futebol puro o conhecimento era empírico, dos pés à cabeça, de calças rotas
e ténis de boca aberta, sem o cheiro a novo das réplicas perfeitas das escolas
de futebol nem dos sonhos formatados em laboratórios franchisados que cresceram
como ervas daninhas pelos centros urbanos.
O menino
cresceu, fez-se homem e descobriu na teimosia empírica que o futebol nasceu
para todos mas nem todos nasceram para ele. Seguiu o seu caminho à sombra do
jogo, comprando um lugar do lado de lá do tapete verde, aos brados, por vezes
em lágrimas, por entre a turba de outros ex-futuros craques, sonhando com a
ressurreição através dos olhos da descendência.
Em menos
de nada, está o menino inscrito numa escola de futebol, fardado a rigor e com
ar de craque em miniatura. Há lugar para todos e a nenhum é negada a esperança
de altos voos, mesmo que ainda não saiba correr, que seja coxo de uma perna ou
das duas, não veja, não ouça ou que confunda futebol com Lego. Viva a
democracia. Desde que pague, não se impede ninguém de acreditar em Bolas de
Ouro ou em Ligas dos Campeões.
As escolas
de futebol são um sinal dos tempos, destes tempos de suspeita racionalidade em
que entidades mascaradas de mercados, substituíram o papel dos ditadores no
despotismo das sociedades modernas. Tudo tem um preço, tudo se resume á esfera
numerológica que a lógica, essa, é uma batata.
O futebol
como fenómeno maior de aglutinação de afetos tornou-se de á muito um espaço
privilegiado para os mercados se alimentarem dos milhões que caem do céu
provindo de lugares exóticos, como quem compra estrelas com amendoins. Embora
sem movimentarem milhões, as escolinhas tornaram-se com o dealbar do Século num
fenómeno empresarial que aproveitou as mais imaginosas obsessões futebolísticas
dos papás.
Esquecem-se
que o talento nasce de geração espontânea. Cristianos Ronaldos não se compram
no supermercado nem em lojas de conveniência embora seja de toda a conveniência
fazer render o peixe enquanto a maré está cheia.
Na
verdade, criar condições para a aprendizagem e desenvolvimento da prática do
futebol até pode ser benéfico desde que não se perca de vista a pureza lúdica
do jogo selvagem. Aproveitar o talento puro e optimizar as valências juvenis
devia ser o foco das escolas de futebol sem descurar o fundamental
amadurecimento humano do individuo enquanto projecto de ser Social. Tal no
entanto não parece ser condição primeira nos projectos empresariais destas
escolas.
Uma
observação atenta do quotidiano destes espaços permite aferir que a metodologia
empregue se destina ao ensino dos fundamentos básicos do jogo a partir de uma
lógica de competitividade que permeia o individuo e não o desenvolvimento das
suas competências numa lógica colectiva.
O mais
chocante é ver que o núcleo fundamental para o crescimento equilibrado; a
família; é o principal elemento desestabilizador do carácter da criança. Basta
assistir a um qualquer encontro de escolinhas e assistir ao espectáculo triste
do incitamento à agressividade muito para além da normalidade entre formadores
de gente, ao ponto de serem, tantas vezes, as próprias crianças a educar os
pais para o fair play.
Tão ideal
quanto utópico seria adaptar o futebol de formação à formação de pai,
fazendo depender o sucesso daquele aos méritos deste.
Da
(de)formação de base se justificam os excessos, a violência que tanto
condenamos e que é sempre culpa dos outros, nos estádios e fora deles.
Não
existem craques sem Homens. Formar para o jogo vai muito para além do passe e o
remate, da defesa ou o ataque. Ensinar futebol é também ensinar cidadania,
porque a vida é apenas um jogo.