sexta-feira, 13 de setembro de 2013

Entrevista a Veiga Trigo, antigo árbitro do futebol Português

O árbitro de Beja tem memória de elefante para datas, resultados, marcadores e expulsões."O Fernando Couto é o caso mais sensacional que já vi: era problemático até dizer chega"
Com ele ninguém faz farinha. Da estreia, em Setembro de 1979, à despedida em, Fevereiro de 1996, é um dos árbitros mais temidos de sempre do campeonato nacional pelo seu ar decidido e atitude destemida. Uma leve apitadela de Veiga Trigo é o suficiente para pôr qualquer um em sentido. Seja ele Pimenta Machado seja Fernando Couto.

Veiga Trigo atento ao aperto de mão entre João Pinto e Carlos Manuel em Outubro de 1989. “Um-zero, autogolo do André”, resume o árbitro, que insiste que observemos a maçã do rosto do lado esquerdo do capitão leonino


Boa tarde, é o Veiga Trigo?

Sim, diga.

Falamos do jornal i, está bom?

Óptimo, e o senhor?

Também bem, obrigado. Retirou-se do futebol há?

E não tenho saudades nenhumas, garanto-lhe. Há 17 anos que me desliguei do futebol.

Então porquê?

Simplesmente passa-me ao lado.

...

Não evoluiu, a confusão é a mesma de sempre. Os árbitros não evoluíram. Os estádios mudam, os clubes sobem e descem, mas não há maneira de mudar algumas mentalidades. Os árbitros, por exemplo, até já são pagos para treinar.

Como era no seu tempo?

Era eu que pagava o equipamento e os fatos de treinos. Ligavam-me a meio da semana a marcar o jogo do fim-de-semana e a dizer o nome do hotel, o resto era connosco. Tínhamos, eu e os meus assistentes, de fazer contas de cabeça para levar o carro daqui de Beja até à cidade em questão.

Se o jogo fosse lá em cima no domingo...

Saía daqui no sábado às 14 horas, com os meus assistentes.

E se fosse no sábado?

Tínhamos de sair na sexta às 17, mal acabasse o meu turno no emprego.

E o Veiga Trigo fazia o quê?

Trabalhava com peças aqui na concessionária da Ford de Beja. Veja isto: naquele tempo, início dos anos 80, a A1 ainda não estava construída, então a viagem para cima durava seis, sete horas. Quando a A1 ficou pronta, já só eram três horas e meia, quatro horas. Menos mal, mas era assim: telefonema para definir o jogo mais o hotel e depois desenrasquem-se.

E lembra-se do seu primeiro jogo?

Então não? Belenenses-Boavista [certo]. Ganhou 1-0 o Belenenses [certíssimo]. Logo ali tive o meu primeiro problema com um dirigente, o Valentim Loureiro. Na altura sentava-se no banco e veio protestar comigo no final do jogo. 'Tá a ver não 'tá? Por acaso [e começa a rir-se], tenho aqui umas fotografias desses protestos e sempre que as vejo lembro-me perfeitamente das palavras dele: "Mandam para aqui umas crianças..." Tinha 28-29 anos, era muito novo para apitar na 1.a divisão e ele saiu-se com essa.

Hum, problemas com dirigentes. Era comum?

Aqui e ali, nada de especial.

Mas com quem?

Olhe, o Pimenta Machado.

No início ou no fim de um jogo?

No intervalo de um Vitória de Guimarães-Benfica. Ele entrou no túnel a dizer--me 'vou abrir os portões para deixar entrar os índios' e eu respondi-lhe na hora 'veja lá se não leva com uma seta'. Tinha de ser assim, resposta na ponta da língua para eles verem quem mandava ali. Ganhava-se fama, boa fama.

Claro, claro, o árbitro é sempre um alvo fácil.

Pois. Salvo erro, ganhou o Benfica por 4-1 [o homem não falha]. Ao intervalo, 1-0 [jackpot].

E outros presidentes: João Rocha, Fernando Martins, Pinto da Costa...

O João Rocha sempre me tratou bem, impecável. Como o Fernando Martins. Zero de problemas, vozes pelo ar, palavras mal dirigidas. Nada. Com Pinto da Costa também não. Bem, só uma vez. Num Salgueiros-FC Porto, 0-0, em 1982, veio dizer-me que não tinha dado os descontos necessários. Mas eram coisas com que se lidava com facilidade, 'tá a ver? Eu achava-me com razão e pronto.

E quando não tinha?

Admitia o erro quando me voltasse a cruzar com esse alguém. E isso acontecia, claro. Pensamos que decidimos bem e de repente mudamos a forma de ver o lance no "Domingo Desportivo".

Estamos arrumados em matéria de presidentes. E treinadores?

Muitos e bons. Tive uma grande zanga com o Manuel José, por exemplo. Não me lembro do jogo [hãã, a sério?], mas ele protestou bastante e até ficámos sem nos falar um tempo. Era um jogo do Sporting, não me lembro de mais nada [amnésia?, no arquivo vemos só dois jogos entre Veiga Trigo e Manuel José: Marítimo, 0-0 nos Barreiros; Vitória, 3-1 em Guimarães]. Eu acompanhei a transição do Manuel José como jogador no Espinho, jogador-treinador do Espinho e depois só treinador do Espinho. Aliás, o meu segundo e terceiro jogos da 1.a divisão são com o Manuel José no Espinho: nos Barreiros e nas Antas [confere].

José Maria Pedroto?

Já o apanhei na fase final da carreira mas ainda assim há um episódio engraçado, curiosamente nesse FC Porto-Espinho do Manuel José. Está 3-0 ao intervalo e cai um nevoeiro daqueles na segunda parte. Da única câmara da RTP da bancada não se via nada. Nada mesmo. Valeu a câmara colocada ao nível do relvado. Bom, o jogo realizou-se e o Pedroto veio dar-me os parabéns pela arbitragem na segunda parte. Guardo as suas palavras: "Você devia era ir correr a maratona em vez de estar aqui atrás da bola e dos jogadores."

Mais jogos assim?

Assim? Olhe, o último jogo no pelado do Académico Viseu, com o Benfica. Lembro-me perfeitamente dos treinadores: Fernando Cabrita e Lajos Baroti [bate certo]. Zero-dois, golos de Nené e Filipovic [é um artista português].

...

Outro jogo. Em Novembro de 1982, um Rio Ave-Benfica. Quando cheguei ao estádio havia muito mais gente lá fora do que lá dentro. Natural. Quando entro no campo, aquilo estava tão cheio que os espectadores estavam colados às linhas do jogo. Interrompi o jogo aos cinco minutos, falei com a polícia e estabelecemos ali um perímetro para poder continuar sem sobressaltos. Mesmo assim, se se esticassem, as pessoas podiam tocar na bola num canto ou num lançamento lateral. Muito engraçado. Quando acabou, e o Benfica ganhou 1-0, por Nené, o Eriksson veio ter comigo, apertou-me a mão e disse-me que aquilo nunca aconteceria na Suécia.

Parece-me animado a recordar isso.

Sim, recordar é muito bom. Tenho saudades dos jogos às 3 da tarde. Tenho saudades do adepto do garrafão de vinho, com broa e presunto. Comiam, bebiam e entravam lá dentro para fazer a festa. Hoje não, há claques organizadas.

Por falar nisso, mais incidentes como os do Pimenta Machado?

Uma vez, na Póvoa de Varzim, pontapeiam a porta do nosso balneário a gritar "vamos chamar os ciganos". E eu, "quais, os que estão acampados lá fora a viver a sua vida tranquilamente ou os que estão aqui dentro?". Silêncio e fim da história.

Jogadores boa onda, havia?

Tantos! Manuel Fernandes, Shéu, Humberto Coelho...

E má onda?

O Porto tinha muitos [e ri-se]. O Jorge Costa... bem, mas o Fernando Couto é o caso mais sensacional que já vi: era problemático até dizer chega. Ainda hoje amigos em comum dizem-me "ó Veiga, ele fora do campo é o oposto". Acredito, claro, mas ele lá dentro era um caso sério, seriíssimo. Uma vez, Benfica-FC Porto, um Estádio da Luz cheio e vejo-o picado com o Mozer. Falo com eles e acalmo-os. Ou tento. Mal viro as costas, vejo uma agressão do Couto. Expulsei-o, não havia outra solução [agora é a nossa vez: Benfica 2-0, golos de Ailton e Rui Costa].

As agressões eram comuns?

Uiii, outro Benfica-Porto. Um lance de bola parada e, de repente, o Celso dá um murro no Carlos Manuel que ele até levantou os dois pés do chão.

Assim do nada?

Estavam picados, claro, mas aquilo foi repentino, do nada, sim. O Celso foi expulso e marquei penálti a favor do Benfica. Ainda hoje, se olhar bem para a maçã do rosto do Carlos Manuel, o lado esquerdo, digo, verá ainda ali um ferimento. Levou quatro ou cinco pontos.

Cinco, estou a ver aqui um jogo com cinco golos do Jordão...

Ah sim, 5-0 do Sporting ao Rio Ave, em Alvalade, num sábado à noite [assim é complicado].

Isso é memória de elefante.

Não é, não. É de árbitro.

E como se agarrou ao apito?

Eu jogava futebol.

Onde?

No Desportivo. De Beja, claro.

Em que posição?

Primeiro defesa-direito, depois guarda-redes.

Era bom?

Não dava uma para a caixa.

Daí a arbitragem?

Apitava jogos nas horas livres e fui apanhando o jeito. Mas arbitrava por instinto, nem sabia da existência de um livrinho das leis do jogo. Há aí muito bom jogador que ainda hoje não leu nem sabe disso. Como eu também não sabia. Bom, um belo dia, o presidente do conselho de arbitragem de Beja ofereceu-me esse livrinho e abandonei os juniores do Desportivo, aos 17 anos, para ser árbitro a tempo inteiro.

Lembra-se da estreia?

Claro, tinha vindo de dois anos em Angola como militar. Cheguei a Portugal numa segunda-feira e apitei no domingo seguinte.

Que jogo?

Um dos juniores, em Moura, com o Despertar de Beja. Depois...

Jogos internacionais?

Eram tempos difíceis. Portugal era um país tão pequeno que não tinha assim muitos árbitros na UEFA. Era o tempo do Carlos Valente. Fui muitas vezes fiscal-de-linha dele.

E é mais difícil ser-se fiscal-de-linha...?

É muito mais fácil ser-se árbitro. Para fiscal-de-linha, temos de ganhar umas rotinas muito específicas.

E antes do Carlos Valente?

Era o Rosa Santos, também aqui de Beja. Quando ele subiu a internacional em vez de mim amuei [começa a rir-se] e fui jogar futebol para o Alvorada FC. Era médio e até marquei uns golos, veja lá bem.

Isso foi quando?

1984. Depois o Adriano Pinto entrou para a federação de arbitragem e falou comigo para regressar. Aceitei.

Tem noção de que o Benfica nunca perdeu em casa consigo a apitar?

Calma aí, o Benfica nunca perdeu na Luz, mas já perdeu em casa emprestada: nas Antas, 1-0 do Vitória de Setúbal, golo de Aparício. Em 1987, o treinador do Vitória era o Malcolm Allison, aquele campeão pelo Sporting em 1982.

Curioso falar do Sporting. Também nunca perdeu consigo em casa (14 vitórias e um empate, vs. Beira-Mar).

Mas olhe que o Sporting perdeu comigo fora de Alvalade... deixe cá ver? 3-0 do Amora [1981], 2-0 do Penafiel [1984], 3-1 do Vitória de Guimarães [1986].

E nas Antas?

O Mourinho Félix ganhou lá pelo Rio Ave, 2-1 em 1981. E ainda apitei três clássicos. Duas vitórias, 2-0 ao Sporting em 1982 e 1-0 de Timofte ao Benfica em 1992, e um 1-1 com o Sporting em 1994.

Os clássicos eram o grande desafio?

A Taça de Portugal é que era o melhor momento. Pelo estatuto da final e pelo Jamor.

Foi a quantas?

Duas, e seguidas. Em 1992, Boavista-FC Porto 2-1. Em 1993, Benfica-Boavista 5-2.

Não foi nessa última que até expulsou um jogador...

Do banco de suplentes do Boavista.

Isso.

O guarda-redes Alfredo. Esse também era fresco [e ri-se].

in iOnline.pt

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